O dia 12 de outubro de 2003 merece uma página especial na história da F-1. Nesta tarde, no Japão, madrugada no Brasil e quase manhã na Europa, a enorme legião de fãs da principal categoria do automobilismo mundial viu cair por terra o mito do pentacampeonato de Juan Manuel Fangio.
Quando eu comecei a acompanhar de perto este mundo, chegar a um tricampeonato era o limite natural do ser humano que se enfiava dentro de um cockpit para enfrentar desafios de coragem, arrojo, técnica e controle emocional em verdadeiras batalhas das quais nem todos saiam vivos. Alguns anos depois, um francesinho narigudo, que somava a tudo isso uma frieza excepcional, conseguiu ser tetra, o que já parecia perto demais do mito argentino. Hoje, aos 54 anos de existência, a F-1 já tem o seu primeiro hexacampeão. E eu me sinto à vontade para arriscar a dizer que jamais haverá outro.
É um risco muito grande afirmar isso? Pode ser. Mas os números de Schumacher reduzem esse risco a quase zero. Basta dizer que um dos tricampeões que conheci, nos anos 70, Jackie Stewart, sentiu praticamente perpetuado o seu recorde de vitórias no dia em que venceu pela 27ª vez um GP. Ayrton Senna, também tri, superou esta barreira sem dificuldade e chegou a 41. No ano do tetra Prost alcançou 51 vitórias. Schumacher já tem 70, e não vai parar por aí.
O primeiro ato do Schumacher seis vezes campeão foi um abraço demorado e agradecido em Barrichello. O segundo foi uma conversa de canto de box com Takuma Sato, o piloto japonês que está voltando à F-1, a quem pediu desculpa pela manobra que havia causado um toque entre os dois na corrida. Atitudes como essas resumem o que é Michael Schumacher além do que o mundo inteiro já sabe. Certa vez, Ricardo Rosset, disputando seu primeiro Mundial, em 1996, me falou sobre o relacionamento dos novatos com os veteranos e vencedores da época, que eram Schumacher, Damon Hill e Villeneuve. Rosset conta que em todos os encontros entre pilotos nos finais de semana de corridas, o único que procurava saber como ele estava se adaptando às pistas e ao carro, dando mostras de querer ajudar, era Schumacher. Hill e Villeneuve nem olhavam.
O tempo passou e Schumacher continua o mesmo. Na verdade, até melhorou. Cresceu interiormente, principalmente depois do acidente de 1999, em que ele fraturou a perna na Inglaterra, ficou seis corridas fora da F-1 e muito mais perto da mulher (Corinna) e dos filhos (Gina Maria e Mick).
Para confirmar isso, dias atrás o Luciano Burti, ex-piloto de testes da Ferrari, me disse que não há um dia em que, ao terminar um teste, ele não receba um telefonema do alemão querendo saber tudo a respeito do carro. Claro que existe aí um interesse direto de Schumacher, mas ele poderia muito bem esperar um relatório completo que os engenheiros da Ferrari lhe passam, como obrigação, além do prazer em tratar diretamente com aquele que eles tratam como rei. No entanto, prefere conversar – e nunca menos de meia hora – com Burti. É mais uma prova de consideração. Conhecendo este lado do alemão, eu me espanto com um único senão nesta sua biografia, que foi aquela resposta dada a um repórter da TV italiana. Perguntado sobre a ajuda de Barrichello, ele respondeu “E quando foi que ele me ajudou?”. Não conheço as circunstâncias em que a entrevista foi feita, nem o que antecedeu a pergunta e nem a interpretação que Schumacher teve da questão levantada. Em condições normais, ele jamais teria dito isso. Simplesmente porque não pensa assim.
Os feitos do hexacampeão na pista todo mundo já conhece. Em 13 temporadas, ele reduziu a pó recordes que pareciam imbatíveis. O único que resta é das 65 poles de Ayrton Senna (faltam dez), mas, ao contrário do que muita gente diz, ele não se importa com isso. Ao contrário, provavelmente, se sente feliz de ainda existir uma marca que pertence a Senna, o que valoriza ainda mais todos outros recordes batidos. O nome Senna tem uma grande importância para Schumacher. Nesse tempo todo de convivência com ele, o único momento em que eu o vi se emocionar de forma descontrolada foi em Monza-2000, quando o entrevistador da coletiva com os três primeiros colocados no GP o lembrou de que aquela 41ª vitória o deixava empatado com Ayrton. O alemão chorou convulsivamente durante cinco minutos, de nada adiantando a tentativa do irmão Ralf e de Mika Hakkinen em consolá-lo.
Bem antes disso, em 1993, ao alcançar sua segunda vitória na F-1, em Portugal, Schumacher recebeu no pódio um agradecimento de Alain Prost, que, naquele dia, se tornava tetracampeão. Nem ele, e muito menos nós, poderíamos imaginar que quatro títulos viriam a ser pouco para ele. A caça aos títulos começou na Benetton-Ford no ano seguinte. A conquista foi justa para quem venceu oito vezes no ano, só o desfecho não foi limpo. Depois de errar e bater no muro, o alemão impediu a passagem de Damon Hill provocando um acidente que quebrou o braço de suspensão da Williams do inglês. O bi veio em 95 com Benetton-Renault, às vésperas de aceitar o desafio de pilotar uma Ferrari, depois de hesitar muito e ser convencido pelo empresário Willi Weber.
Os primeiros anos de Ferrari foram de derrotas. Como a do papelão de 97, quando tentou tirar Villeneuve da pista na última corrida do ano, mas de deu mal e perdeu o título para o canadense. Em 98 foi derrotado por Mika Hakkinen. Em 99, ano do acidente de Silverstone, viu Hakkinen ser bi, batendo Eddie Irvine. A trajetória de títulos só foi retomada em 2000. No ano seguinte igualou o tetra de Prost. O lendário penta de Juan Manuel Fangio foi alcançado em 2002. E o sexto título veio agora, por dois pontos de vantagem sobre Kimi Raikkonen ao final do campeonato mais disputado dos últimos quinze anos. Mas, no total da obra, 70 vitórias, 122 pódios e mais de mil pontos (1.038) fazem de Schumacher o maior da história.
Comentarista das corridas que são transmitidas pela Rede Globo de Televisão.
Escreve colunas para o jornal “O Estado de São Paulo” há 10 anos, que são publicadas todas as sextas-feiras.
Leme é colunista da F1Mania.net desde o dia 08/08/2003.