A coragem e ousadia que intimidavam os rivais deram fama de durão a Paulo Gomes, que se tornou o maior campeão do automobilismo brasileiro
Aos 70 anos e ainda competindo na Old Stock – categoria que utiliza os antigos Opalas da Stock Car em Interlagos –, Paulo de Mello Gomes parece um garoto quanto fala de sua paixão: acelerar. Bonachão e de sorriso fácil, usa a voz poderosa para contar passagens inesquecíveis do esporte brasileiro, no qual conquistou incríveis 14 títulos nacionais.
Único veterano do nosso automobilismo a permanecer como embaixador de uma marca na atualidade – a fabricante de sistemas de segurança de dados virtuais Hero –, Paulão nos falou da era romântica do esporte, dos vários amigos que perdeu nas pistas e de passagens memoráveis de sua rica carreira, em uma história que se confunde com a saga do próprio automobilismo brasileiro.
“Se eu tive mais de 200 vitórias, e do jeito que eu pilotava, você pode também imaginar a quantidade de acidentes que tive”, diz ele, lembrando também dos vários amigos que perdeu nas pistas. “Mas eu nunca tive medo. Simples assim”.
Paulo Gomes pilota atualmente o Opala #22 da Hero Motorsport na Old Stock Race.
Confira a entrevista:
Você é o piloto brasileiro com mais títulos nacionais. Quantos são?
Que coisa. Eu não fico guardando esses números, vitórias, poles etc. Falha minha nessa era do marketing que vivemos. Mas aqui no Brasil estamos mal na questão de preservar a história, não é? Com certeza são 14 títulos, todos quando essas categorias reuniam os melhores pilotos do país. Três deles na Divisão 3 e quatro na Divisão 1. Mais dois na extinta Copa Fiat, um no Brasileiro de Marcas, quando o grid era realmente estrelado. E quatro na Stock Car.
E vitórias, quantas tem?
Desculpe se parece imodéstia, mas já perdi a conta. Certeza que são mais de 200. Na Stock Car, são 40 vitórias e 91 pódios. A memória falha, mas sei disso por que fizeram um anuário. Venci também o Troféu Grão Pará, que foram duas provas que disputamos no Estoril, em Portugal. Então, sou o único campeão internacional da categoria. Acho que posso dizer que sou o “único campeão mundial”. (risos)
Legenda: Paulo Gomes vence o Troféu Grão Pará, em Estoril, Portugal
Olhando tudo isso, quais foram os seus títulos mais importantes em todas as categorias?
Difícil dizer mas pelo momento histórico acho que o mais importante foi o do ano de estreia da Stock Car, em 1979. Foi uma das minhas vitórias mais sensacionais – e lembro bem dela até por que as pessoas que acompanham a Stock estão sempre citando isso quando me encontram. Eu fui para a última corrida, em Interlagos, com 20 pontos de desvantagem para o Affonso Giaffone Júnior e 16 do Alencar Júnior, segundo colocado. Eu era o terceiro. Eram ótimos pilotos, tanto que ambos foram campeões da Stock nos anos seguintes. Naquela época a vitória contava 20 pontos, a melhor volta um ponto e a pole, um ponto. Foi um fim de semana tenso. Ganhei a corrida e fiz a melhor volta, enquanto os dois bateram. Venci o campeonato só por um ponto sobre o Giaffone. Eu tinha 31 anos e estava no auge.
Houve algum título que foi fácil?
Vou dizer que eu não tive muita moleza na minha carreira. Eu sempre enfrentei pilotos de qualidade e geralmente esse pessoal tinha boas equipes. Mas um que lembro foi em parceria com um grande craque, José Carlos Pace, em 1974, na Divisão 1, de Maverick. Éramos da equipe Mercantil Finasa, que era o nome oficial da equipe Greco Ford naquela competição. Nossa dupla era realmente encardida. O Moco era rápido e genial, um cara que todo mundo acreditava que ia ser grande na Fórmula 1. Então bastava nos dar um bom carro que a gente não decepcionava ninguém. E a equipe Greco sempre tinha um bom acerto. O campeonato teve seis provas. Nós vencemos quatro, tiramos um segundo lugar e não pontuamos apenas em uma corrida. Por isso vencemos o campeonato bem antes do término dele.
Seus melhores momentos foram sempre vitórias?
Tive várias corridas extremamente emocionantes na minha carreira, que acabei não vencendo. Por exemplo, nas Mil Milhas de 1970 eu andei de Puma, um carro que muita gente deve lembrar. Ele era bonito, mas não era rápido como os nossos concorrentes, que incluíram Ferrari, Porsche, McLaren e uma série de carros muito fortes da época. Mas naquele dia choveu. Eu tinha só 22 anos e, contando o kart, ainda estava no oitavo ano da minha carreira. E eu andei na frente de todo mundo com o Puma. Isso chamou muita atenção no mundo das corridas da época. A Mil Milhas de Interlagos foi uma das corridas de longa duração mais prestigiadas das Américas. Naquele grid havia muita gente de grande talento e renome. É algo que até hoje me dá muito orgulho.
Paulo Gomes pilota atualmente o Opala #22 da Hero Motorsport na Old Stock Race.
Cite três momentos na pista que marcaram sua trajetória?
Tenho momentos realmente inesquecíveis – mas são muito mais do que apenas três! Um que me vem à memória imediatamente aconteceu nas 24 Horas de Le Mans de 1978. Eu, Alfredo Guaraná Menezes e Marinho Amaral formamos a primeira equipe com 100% de jovens talentos brasileiros. Eu tinha 30 anos de idade. Corremos com um Porsche 935. Quando eu estava na famosa reta Mulsane, a mais de 300 km/h, aconteceu um acidente bem na minha frente. Foi um impacto formidável, parecia que tinha caído um avião na pista. Lembro de um grande estardalhaço e do carro ricocheteando de um lado para o outro nos guard-rails bem na minha frente. Voaram tantas peças de carro para todo lado e depois fiquei sabendo que o piloto não resistiu e faleceu. Assustador.
Em 1972, em uma corrida de campeonato brasileiro, eu pilotei um Ford GT40 em Interlagos. Lembro que bati e não deu tempo de tirar a mão do volante – um reflexo que os pilotos têm para se proteger quando sabem que a pancada é inevitável. Foi muito dolorido, por que quebrou a minha mão – mas eu continuei na corrida até o final. Fiz pela equipe e isso me dá muito orgulho até hoje.
Em uma prova em pista de rua em Goiânia, em 1970, eu corria com um Puma que tinha um acerto maravilhoso. Começou a chover e por causa das ultrapassagens meu parabrisas ficou muito sujo. Eu já não via quase nada e ficou perigoso. Naquela época, as coisas eram mais liberais. Então eu parei o carro na área de escape de uma curva. Desci, limpei o parabrisas. Lembro de alguns carros passando por mim e os pilotos observando com o canto dos olhos, meio incrédulos, meio esperançosos de que eu ia abandonar. Mas eu voltei pra pista e ainda ganhei a corrida (risos). Quando cheguei no box, estava todo mundo meio espantado. Mas a equipe ficou feliz, por que deu tudo certo – meio no risco, mas funcionou. (risos)
Quais personagens foram importantes para você?
Eu tenho tantos amigos no automobilismo. É difícil nomear amigos queridos sem fazer injustiças. Mas vou apenas citar aqui alguns. Certamente o Affonso Giaffone Júnior é um deles. Ele me ajudou muito no começo da carreira. Nós corríamos de Opala e ele me ensinou muita coisa de acerto e isso fez uma boa diferença. Um dos nomes principais da minha vida profissional foi o Moco, José Carlos Pace. Ele me levou para correr de Fórmula 3 na Inglaterra em 1976. Mas eu era muito alto e grande para os fórmulas. O Moco foi fundamental, inclusive sendo meu parceiro em corridas que vencemos juntos.
Talvez se eu não tivesse sido contratado pelo Agnaldo Góes, chefe da equipe oficial BMW no anos 70, eu não teria conseguido seguir carreira. E, obviamente um personagem fundamental foi o Trovão (Luiz Antonio Greco), o mais astuto chefe de equipes do nosso automobilismo. Era bom estar no time dele, oficial da Ford, por que seu arsenal de artimanhas estratégicas e técnicas era interminável. Ser escolhido por ele era praticamente um elogio para qualquer piloto da época.
O Antonio Castro Prado foi um grande amigo. Nos dávamos bem juntos, mas também brigávamos muito! (risos) Era um talento.
Um que me acompanha até hoje é o Bel Camilo, pai do Thiago Camilo. É uma festa sempre que nos vemos – e é algo muito especial ver nossos filhos juntos competindo e interagindo na Stock Car, como nós dois já fizemos no passado.
Paulo Gomes em exibição da Stock Car com seu Opala 1979, primeiro campeão da categoria.
Qual a corrida que achou que nunca ia ganhar – mas venceu?
Na fase áurea da minha carreira, eu sempre entrava na pista determinado a ganhar todas as provas importantes. Acho que essa crença me ajudou muito a ser competitivo, por que eu buscava sempre realizar o que eu acreditava estar ao meu alcance e também da equipe. Então não sei se existiu uma corrida que eu achei que nunca iria ganhar.
Quando passou a acreditar que seria piloto profissional?
Meu pai, Seu Cícero, era funcionário do Banco do Brasil. Ele gostava muito de automobilismo. Eu morei em Santa Cruz do Sul quando criança e fui com ele a muitas provas de Carreteras, nas estradas poeirentas do Rio Grande do Sul, o que realmente me encantou. Eu era pequeno, com cinco ou seis anos, e aqueles pilotos eram demais!
Quando mudamos para Ribeirão Preto, meu pai logo fez amizade com alguns pilotos de kart. Eu ia sempre junto para essas provas. Foi natural começar a sonhar em ser como aquelas pessoas, que se divertiam e faziam algo que eu e meu pai achávamos emocionante. Mas éramos apenas espectadores.
Então, em 1969, com 21 anos fui trabalhar com um amigo chamado Sérgio Louzada. Fui contratado para ajudar na equipe de kart dele. Foi o Louzada quem comprou o Puma que pilotei nas Mil Milhas em 1970. Depois que corri nessa prova recebi convites de várias equipes profissionais da época. Um deles veio do Agnaldo Góes, da equipe Cebem BMW – que acabei aceitando, claro!
Pouco depois, o Luiz Antonio Greco, da equipe Ford, convenceu o Aguinaldo Góes a me liberar para ser da equipe dele. O Grecão tinha faro para identificar um bom piloto. Foi então que me tornei profissional de verdade. Era jovem e tinha salário para pilotar! Também havia outras mordomias, como um carro cedido pela Ford para andar por aí. Fui crescendo no time e ganhei sete campeonatos nacionais pela equipe Mercantil Finasa Ford, chefiada pelo saudoso Grecão.
Nota: Aguinaldo Goés foi piloto, dirigente e dono da equipe CEBEM, única representante da alemã BMW no Brasil.
Paulo Gomes sentado na traseira do seu Opalão #22, com o qual sagrou-se o primeiro campeão da Stock Car Brasil em 1979
Você era famoso por jogar duro…
Eu realmente sempre joguei muito duro na pista. A questão é que eu não tinha medo. Partia para o tudo ou nada com a maior facilidade. Existem alguns pilotos que acham que eu era desleal. Mas não é isso. Eu ia até o fim, até não dar mais em termos de freada e aderência. Comigo não tinha esse negócio de aliviar, não – eu jogava duro, mas sempre jogava limpo. Claro, às vezes a gente batia. (risos)
Alguns caras não olhavam no espelho, ou não percebiam que eu vinha tão rápido e que logo estaria lado a lado. O cara não tinha essa noção e, quando ele resolvia fechar a porta, eu já estava ali, do lado, desafiando ele. Por isso muitas vezes eu acabava “trocando tinta” com outros carros, por que eu não tirava o pé do acelerador. Logo todo mundo viu que eu era assim. Esse era o meu estilo.
Se você encontrasse o Paulão na pista, o que faria pra passar?
Ao longo dos anos eu encontrei muitos pilotos com um estilo parecido com o meu. Era difícil passar, claro. Mas se eu tivesse um carro que permitisse tentar a ultrapassagem, eu ia tentar a manobra de qualquer jeito – podia ser quem fosse na minha frente. Eu não ficava ali ensaiando, analisando. Ia pra cima – e os meus adversários mais tradicionais já sabiam o que esperar.
Ser piloto era mais uma paixão, ou mais uma profissão?
Para mim, basicamente, era tudo junto e misturado. Não é fácil definir isso. Pilotar era o que eu queria e sabia fazer na vida. Era paixão, profissão, obsessão – e o que mais você imaginar para definir algo que me fazia levantar de manhã com muita vontade e gratidão. Família à parte, até hoje as competições são a coisa mais importante da minha vida.
Dá pra comparar a Stock de hoje com a época dos seus títulos?
Sim. Na minha época, a cada ano, tínhamos cinco ou seis pilotos com condição de ganhar. E hoje temos uns 15. A Stock evoluiu muito em qualidade, segurança… Mas em termos de estilo de pilotagem é difícil falar. Por que os carros atuais oferecem uma condição técnica melhor para a condução. Chassi e pneus são mais eficientes, o câmbio é específico de corridas e tem engates mais fáceis. Tecnicamente, na questão carro, é difícil fazer um paralelo. Mas gostaria de colocar alguns desses garotos no meu Opala da Old Stock para que eles dessem sua opinião. Acho que eu ia me divertir muito vendo a surpresa deles (risos).
Nota: Em 2010, a Rede Globo exibiu no Esporte Espetacular um desafio entre o “Opalão” 1979 da velha geração da Stock contra a nova geração de 2010. Paulo Gomes ao volante do Opala #22 e Felipe Giaffone no Peugeot #80 – de Marcos Gomes. Veja o vídeo.
14- Quantos anos durou a sua carreira?
Comecei sob os olhares do meu pai aos 14 anos de idade, no kart. Mas me recuso a dizer que teve um fim. Na Stock andei até 2004. Mas é claro que não era a mesma coisa que nas décadas de 80 e 90. Em 2007 participei de uma Mil Milhas com um Corvette GT1, com Alencar Júnior e Clemente Lunardi. Sempre dá aquela inquietação, sabe? Tipo: vamos pra cima, vamos ganhar mais uma! É algo que faz parte da minha natureza.
Mas se você considerar que em 2018 ainda faço provas na Old Stock e que fui convidado em Goiânia para uma etapa do Mercedes-Benz Challenge, podemos dizer que minha carreira foi dos 14 aos 70 anos! (risos). Estou de férias… mas nunca vou abandonar o capacete. Se é para acelerar, pode por meu nome na lista!
Paulo Gomes ao volante do Opala #22 da Hero Motorsport na Old Stock Race.
Automobilismo sempre foi perigoso – isso foi muito presente na sua carreira.
Mas eu nunca tive medo. Se eu tive mais de 200 vitórias, e do jeito que eu pilotava, você pode imaginar também a quantidade de acidentes. Talvez seja um número como esse também. Mas eu sempre corri sem pensar nessas hipóteses, nunca imaginei que algo poderia acontecer comigo ou com os outros que me cercavam. Não passava pela minha cabeça – simples assim.
Você perdeu muitos amigos?
Perdi alguns amigos, sim. E filhos de amigos também, especialmente na Stock Car Light – coisas muito tristes que aconteceram. Tomei muito susto na minha carreira. E como meus filhos correm também, o coração aperta. Vi falecer meu amigo Zeca Gregoricinski, faz tanto tempo, acho que foi em 1981, mas certamente foi na curva 3 do traçado antigo de Interlagos, quando o carro dele pegou fogo e não deu para salvá-lo. Coisas assim são marcantes. Senti demais a morte do Moco e do Marivaldo. Eu e o Moco sempre estávamos juntos, o tempo todo. O Antonio Castro Prado era meu conterrâneo, nós morávamos na mesma cidade e começamos juntos a carreira. Infelizmente, faleceu em um acidente de Fórmula 2 na pista de Guaporé, em 1981. Foi um momento extremamente triste e algo muito forte na minha vida também. Outro bom amigo foi o Laércio Justino. Gostava muito dele. Certa vez fiquei doente e pedi para ele me substituir, tamanha a confiança e o talento que o Laércio tinha. Ele me substituiu e venceu algumas provas. Laércio faleceu em um treino de Stock Car em Brasília. Uma morte tão precoce quanto lamentável.
Nota: Zeca Gregoricinski faleceu em 1985. Ele ficou preso nas ferragens depois de uma batida em Interlagos, São Paulo. O carro pegou fogo e o piloto não conseguiu sair. Já Lércio Justino morreu em 2001, depois de perder o controle do carro e colidir contra um guincho no Autódromo Internacional de Brasília.
O que é para você ver um filho campeão, como o Marcos?
Faço sempre questão de dizer que todos os meus filhos são campeões. Adoro também ver o Pedro guiar, ele é muito bom. A Paula não quis seguir nesse meio, o que acho bom, finalmente alguém com juízo na família! (risos). Mas acho que o nome Gomes está mais do que bem colocado na história do nosso automobilismo e é certamente uma coisa única chegar a um autódromo e ir para o box não para ver o meu carro, mas para estar com um filho que acelera como eu. Hoje eu estou em uma posição curiosa: sou embaixador da equipe Hero Motorsport, concorrente do Marcos na Stock. Como profissional, trabalho e torço pela nossa equipe vencer. Mas sempre, lógico, dou uma espiada no box do Marquinhos. Pai e filhos, profissionais do volante: que coisa fantástica! Seu Cícero, meu pai, está orgulhoso na arquibancada lá do céu.
Pai e filho (filho e pai na foto), Marcos Gomes e Paulo Gomes atuam juntos na Stock, porém, equipes diferentes. Paulão é embaixador da Hero Motosport, enquanto “Marquinhos” defende as cores da Cimed Racing em 2018